Só faltavam dois quarteirões para chegar em casa quando um temporal a surpreendeu sem espaços para pingos de anunciação: putaquepariu, tô de branco e esta bolsa ainda é emprestada – pensou, enquanto corria pra baixo da marquise de um correio fechado.
Não seria tão incoerente para um dia pelo avesso como aquele. Vamos lá, primeiro quadro: Despertador tocando se ela dança, eu danço e a notícia de véspera que seria o dia da limpeza na caixa d´água, logo, sem o banho. Segundo quadro: A comissão sobre as poucas vendas baratas quase nula. (#nowplaying: tem-te outra veeeez...) e ainda por cima fizera hora extra limpando o vômito seco de uma criança discreta na cabine dos fundos. Como se não bastasse, ainda perdera o último ônibus e teve que aceitar a carona do marido da dona da loja, que abdicou da sutileza das cantadas superficiais desde que o fantasma da consciência enrustidamente dentro do armário o chantageou mais intensamente.
- Ô sorte!
Mesmo que tivesse a vida toda não seria naquele cenário que queria gastar os seus tão contados minutos. Procurou a Marie Claire que guardava na bolsa, mas percebeu que esquecera no banheiro do shopping. Fazê-o-quê? Ah,sim, claro: hora de contar o número de cores distintas que tinha ao seu redor. Ô mania de contar tudo. Mas, respeitemos: era um dos TOC não superados nos tempos de infância. Sabia de cor do número de letras da legenda de seus filmes favoritos até a velocidade média dos passos por minuto dos seus incontáveis amores platônicos. Ative a máquina de calcular para acompanhá-la agora.
Ele vinha virando a esquina com um ritmo muito próprio, com a indiferença sobre um toró que encharcava sua blusa que não era branca e sua mochila típica-velha-de-guerra que não parecia ser emprestada. Assoviava bem alto chove-chuva-chove-sem-parar como um repente com o estalo oco dos pingos fortes batidos no asfalto também molhado. Uma forma despojadamente carismática para um estereótipo pseudo-marxista, com a barba propositalmente não feita e cabelos enrolados sem corte definido nem por aqueles que inventam a moda padrão. Cursava Ciências Sociais para não fugir da rota e usava chinelos com uma obrigação de quase um uniforme normalista.Tinha um belo sorriso de olhos.
Trinta e seis passos por minuto até parar em frente a mim – pensou aliviadamente orgulhosa.
Ele, como se falando ao vento, sem interlocutor definido e com um tom lento de quem pensava na hora, dizia que não queria pegar uma gripe e estava com os pés alagados demais a ponto certo de escorregar pelos infinitos buracos de rua e que, então, esperaria sob a marquise até que São Pedro encerrasse com sua faxina celestial.(resumidamente: bla-bla-bla-te-quero) Riu ironicamente de um jeito medroso e infantil. Riram juntos.
(ah, vai, como se Ela não soubesse) Entre três perguntas abrangentes, duas músicas favoritas em comum, um mesmo curso de inglês, uma mesma professora adorada, dois ciclos de amizades entrelaçados, um espelhado esfregar de mãos ansiosas, uma indagação:
- Me beijaria?
Pensa rápido: Uma chuva há tempos paradaUma bolsa emprestada jogada sobre um pano sujo, como um quase cuidadoUma blusa branca manchada de um azul molhado em um tecido vagabundoUm beijo atrás da orelha máscula onde a água não chegara pela obstrução do cabelo e o perfume legítimo permanecia,e...
Cheiro familiar lhe era aquele. Entre um beijo e um amasso insistia em voltar às costas da orelha dele, enquanto ainda achava graça da epifania curiosa e tentava desvendar e acalmar aquela angustiazinha como de quem esquece o que ia falar.
Me lembra a infância – pensa – mas não me parece tão distante assim.
Arregala os olhos aos gritos internos sobre os resultados da averiguação do subconsciente: putamerda! Perfume do meu pai.
Por alguns instantes até tentou esquecer o lapso sem culpados, prender o ar, respirar pela boca, mas em pouquíssimo tempo sua imaginação sinestésica já projetou um bigode sobre seus lábios e uma barriga que esbarrava na sua assiduamente. Foi-se esfriando o tesão, a paixão ou qualquer outro flash de sensações, sentimentalistas ou não, que desabrocharam naquela noite. Rendeu-se a sua má vocação para Electra (teria H?).
E assim, com o mesmo molejo que Ele veio pela esquina, foi-se até sua casa próxima, só que agora assoviava tropeços pelo asfalto, que há pouco ganhara em som, ao se enrolar em dúvidas e cismas egocêntricas sobre seu desempenho. Ela seguiu caminho semelhante, mas com uma boa distância. Ria sozinha, de si, de sua desgraça, mexendo a cabeça gesticulando o não-a-cre-di-to, enquanto contabilizava tudo o que perdeu: uma blusa agora manchada, um dinheiro que não tinha em uma bolsa nova, o dinheiro que ganharia pelo dia de comissão, e antigas ilusões que há muito a distraia com idealizações previsíveis e bons sonhos futuros.
- Ô sorte!
3 comentários:
Amor.
Adorei. sutil, fotográfico, sinestésico, referencial, humano, universalista, o final disfórico é ótimo e realçado pela "de"gradação de insatisfações fechada com a ótima "e antigas ilusões que há muito a distraia com idealizações previsíveis e bons sonhos futuros." ele não é tão conceitual e estilístico como outros que vc fez, e por isso ele é ótimo, vc prova que consegue escrever pra todos.
Acho ótimo vc dominar diferentes vertentes... acho fantástico o fato de vc captar o instante. Vc certamente vai achar exagero, mas fiquei com vontade de largar o ubaldo que to lendo pra ler um livro seu. que pena nao ter como fazer vc acreditar.
Fiz questão de ler duas vezes, a segunda para compensar a neglicência da razão. Agora chega, se não vc fica convencidíssima, se separa da banda, e se perde em uma carreira solo improdutiva...
Cabelo sem corte, adorei!!!
Fase 2 da sua carreira, eu entendi de cara o seu texto...simples e profundo, achei q nem os anos 80, que parecem super atuais mas só fazem sentido pq trazem memórias antigas cult...o texto é foda pq é a reunião de pequenas coisas, referências, estruturas, Lucianas, que eu conheço e adoro há séculos...parabéns!!!
bjãooo
LU,
Adorei o conto,essa sua nova faceta. Lucianear me faz muito bem.
Beijos,
Marisa.
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