quarta-feira, janeiro 17, 2007

Narração!

“Era a história rimada de um amor infeliz. Falava-se nas raivas do ciúme, nas rochas de Cascais, nas noites de luar, nos suspiros da saudade (...)

(...)Vejo-o nas nuvens do céu
Nas ondas do mar sem fim
E por mais longes que esteja
Sinto-o sempre ao pé de mim.”

(Eça de Queiroz)


HIV

Sempre fui de me encantar com imagens,me apaixonar por sorrisos e amar apenas por devoção às novelas.Com ela,porém,tudo foi diferente.Fui arquiteto dos 25 aos 27 anos, poeta desde menino e homem desde quando a conheci.Algumas vezes, acreditara que viver de forma morna e cotidiana era o padrão de felicidade,mas minhas peripécias íntimas me fizeram crer que viver uma vida sem oscilações e ousadias é,apenas, esperar o tempo passar.Tenho certo de que não tive um final feliz,mas isso não me magoa tanto quanto pensar que desisti de mim.

Nos final dos meus 25 anos resolvi sair de casa.Não queria ir para muito longe, tinha construído uma estrutura social e profissional em Ipanema e não seria fácil reconstruí-la.Queria uma reviravolta em minha vida,mas me contive em mudar apenas de quadra.Logo quando terminei a mudança, fui avisar aos meus amigos da praia que estava morando sozinho, já que tudo foi tão abrupto e não os via há um certo tempo.No caminho encontrei um homem desesperado,correndo,sem rumo, em direção ao mar.Embriagado de álcool,pensamentos obsessivos e rancor.Mal podia imaginar que aquele encontro seria um divisor de águas dentro de mim.

Consegui contê-lo. Seu pranto fazia das suas palavras incapazes de me explicar o motivo da sua tentativa de suicídio, mas uma foto e uma carta de mulher em sua mão esquerda davam mais sentido a história. Ele pegou em minha mão e encaminhou-me a casa dela que,por conchavo do destino com o acaso, era no mesmo prédio que o meu.Era a esperança daquele homem que eu o salvasse a alma da mesma forma que o salvei o corpo,mas não foi assim.

Passei o trajeto todo lendo aquela carta.Nunca havia lido nada nem semelhante.Era uma mulher tão peculiar e ao mesmo tempo tão tipicamente inteligente e sensível.Era de um eufemismo único e um jogo de cintura magnífico para lidar com a delicadeza da situação.Era a primeira vez que lia aquelas sentimentalidades.Era a primeira vez que apaixonava-me por palavras.Era a primeira vez que amava daquela forma.Platonicamente.Por dez minutos.
Quando a vi nada mudou.Linda.Encantadora.Mesmo que não fosse,já cheguei convencido que seria e,dificilmente aquela impressão iria mudar.Sentia nos olhos dela uma certa reciprocidade àquele estado de êxtase.Ficamos os três em silêncio.O homem nos condenava com sua atitude apática e com suas lágrimas que irrigavam sua fisionomia seca e pálida.Suas lágrimas acentuavam-se, paulatinamente, e a manifestação de sua loucura foi se agravando ao ponto de correr desesperado pela porta, sem dar explicações.Não tive forças para contê-lo.Não quis.

Apresentamos-nos. Encantamo-mos pelas afinidades. Namoramos. Em pouco tempo minhas malas subiram um andar.Estava em um estado de graça jamais experimentado por mim.Jamais ouvira alguém contar-me algo semelhante.Orgulhava-me de mim e sentia que,enfim,penetrava em uma existência superiormente interessante.Era um intimo contato com as mais variadas e excitantes sensações.

Estava tão feliz que tornei-me obcecado pelo desejo de permanência naquele estado.Meu medo de perdê-la condecorava meu ciúme,cada vez mais freqüente,cada vez mais egoísta,cada vez mais doentio.Até o dia em que ela me deixou, restando apenas uma carta em cima da cama para escutar meus lamentos.

Olhei-me no espelho,já não tinha mais graça.Ainda que eu quisesse voltar a minha vida anterior,já não poderia mais.Aqueles pensamentos me corroíam e a saudade mostrou sua face mais absurda.Fui atrás dela inúmeras vezes.Mal conseguia ver seu rosto.Premeditava o local que estaria para nos encontrarmos, quis modelar e construir o acaso,mas fui incompetente.Até que liguei e ela não atendeu.Soube pelo porteiro que estava com outro,saía toda noite,não tinha mais vícios nem atrasos.Percebi que tinha construído uma vida paralela a mim e estava feliz.Morri como homem e nasci como telespectador.

Arranquei a carta da gaveta,agarrei um porta retrato e fui correndo, desnorteado para a praia.No caminho,via a face dela em todos.Xingava todos.Chorava e implorava piedade de todos.Ela debochava.Elas me ignoravam.Todas elas mostravam-se insignificantes.Ela.Elas.Todas.Todos eram devaneios.A tarde estava chuvosa e como era domingo, a rua estava vazia.Ninguém me conteve.

Hoje vejo que a vida é uma roda viva e nossos piores tormentos vêm da busca em tornar concreto aquilo que nem se quer pode existir.Quando li a carta destinada àquele homem, foi como transar com uma pessoa portadora do vírus da AIDS , sem camisinha por opção.A AIDS mantêm-se ,viva, e fazendo mais vítimas.Assim como ela.E nós morremos,literalmente.As pontadas dessa estúpida paixão cegaram meu orgulho e o meu amor-próprio e não houve nenhum tarô em braile capaz de conter o desastre do meu futuro.