I
“Longe, nesta estação de cura,
é que a cidade de S.Paulo vive em mim.
Porque ela está em mim, edificada
na colina nevoenta da minha saudade.”
(Rodrigues de Abreu)
II
“Meu amor prisioneiro
Onde quer que esteja, Deus te proteja
Cuide-se bem
Fique numa zen
Para sempre, amém.”
(Rita Lee e Roberto de Carvalho)
O dia em que se sentiu espaço, pensou que pudesse falar melhor de si. Olhava pela janela como se acompanhasse um trânsito de vida molhada por uma garoa fina de galochas, casacos e boinas de Março. Mas não, ainda não chovia. Era apenas um prelúdio em nublado, como o melhor gosto de pré que compunha suas mais intensas emoções.
A verdade é que, no dia em que se sentiu espaço, notou-se distante o suficiente para que pudesse se enxergar e ver a crosta cinza que se formara em gradação sobre aquele que julgava ser. Era cinza. Tão cinza quanto as cinzas de cigarro de três dias sobre o cinzeiro roubado do boteco, o ar de metrópole e a poeira que recobria a Folha de São Paulo esparramada sobre o sofá. Cinza, como a cor desse mesmo jornal que trabalhava há oito meses, mas com a ânsia de uma rotina de vinte anos.
No mesmo dia em que se observou espaço desenterrou uma vitrola antiga para ouvir seu disco da Rita Lee, pesquisou sobre poesia concreta, revisitou o MASP, Estação da Luz, Museu da Língua Portuguesa, e. Conseguiu, finalmente, tatear o peso que a informação sempre lhe tivera. Afinal de contas, um futuro jornalista tem que ser culto, filhinho. Tem que ler isso-aquilo-aquilo-outro, ver tais-tais-tais filmes, gostar de tal-tal-tal tipo de música. Espaço do estereótipo. Espaço instituído pela sociedade. E qual seria seu espaço?
.pois se viu Sampa, no dia, no momento, no insight em que, de fato, alguma coisa passou a acontecer em seu coração. Coração preenchido por outro espaço.
Aeroporto de Guarulhos, segundo decanato do último mês do ano. Corria feito um louco acreditando que iria perder o vôo das 9 se não chegasse em menos de 30 segundos cronometrados. Sobre o céu e o ponteiro menor em Sagitário, olhou para o pulso e encarou o descuido de acreditar em seu único relógio ainda não adaptado ao horário de verão. Não sabia mexer, era importado, hábitos exteriores, vai saber. E assim, sem escolha, teve que esperar na sala de embarque por um longo espaço de tempo, entre revistas com parênteses de idades e aqueles empresários caquéticos fazendo massagens de 30-reais- 15-minutos.
Resolveu, então, por praticar seu desapego ao instante social; olhos fechados e costas coladas sobre o acento em metal. Sentia o frio ultrapassar a fina fronteira de sua camisa de malha grafite para, aos poucos, ir esquentando com o calor do contato. Encostava cada vez mais à proporção que ia relaxando, enquanto ouvia uma música instrumental ambiente e se concentrava em não pensar em nada. Espaço curto, cur-tís-si-mo, de atenção da maioria de nós. A distração o motivou à medida que se viu quase sem espaço ao colar as costas com as da menina sentada no lado referentemente oposto ao seu do esqueleto das cadeiras. Invasão do espaço corporal por um estranho. Poucos conseguem superar com um sorriso ou lidar como um acontecimento de percurso; se encostaram, apenas, mas é necessário se desculpar.
Viraram-se frente-a-frente, viram-se estrangeiros diante de si. Espaço mínimo, ainda que, de fato, não pertencessem a um lugar comum. Mas foi no desvio de olhar por timidez que ele notou que ela lia Triângulos das Águas. Era o conto Marinheiro e pôde ver, de relance, que ela havia feito uma marcação. Antes que pudesse induzir qualquer tipo de pensamento, um sopro de memória lhe invadiu como se desse espaço de fala a um sentimento até então camuflado dentro de si.
- “Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.”
E a autopunição esparramou-se completamente sobre o espaço da vontade louca de nunca ter dito aquilo. Piegas, muito piegas. E ele lutara quase uma vida inteira contra isso. Não, aquilo não podia ficar assim, era uma questão de honra sobre os olhos da estranha. Pensou em dizer que sua tese tinha sido sobre o quê de jornalístico tinha na literatura marginal e desandar a falar que nem louco sobre a vida e a obra completa do Caio, e tudo de mais around, veias, artérias e aorta para o racionalismo categórico de estilo de época, e,e,e. E o fluxo se rompeu com um sorriso. Sorriso completo em semblante e intenção de calma,-não-é-tão-grave-assim.
Foi no dia em que se viu espaço que, primeiro, encarou-se diante de outro espaço. (#nowplaying: Elephant Gun - Beirut) Vinha a seu encontro uma leveza jamais experimentada por um espírito urbano demais para sentir cheiro de chuva na terra. Há tempos não lhe doía o prazer oposto da gentileza despretensiosa, do sol crescendo livre e colorindo de luz a pedra do Arpoador. Ela era mar e, ao mesmo tempo, era toda a gente que se banhava sobre aquilo tão seu. Por um momento, ainda que cético, desejou intensamente que tivesse a fé que não tinha para que Cristo, com olhos estáticos sobre a sua imensidão, pudesse sempre estar com ela. E estava.
Parece precipitado demais, eu sei. Mas conversaram, combinaram coisas, ela mostraria um Rio pra ele que parecia não ter muita intimidade, mesmo tendo morado lá quando menino e retomado incontáveis vezes para visitar seu pai. Aos poucos ele foi se soltando um pouco mais, falava de sua profissão, o que já tinha visto no cinema, os livros que gostou mais, os cursos, as falidas tentativas de ser atleta ou ator. Eles riam juntos, em harmonia, e ela mostrava um encanto tão contagiante que ele sentia vontade de ser melhor só para contar pra ela. E-mails trocados, telefones, “vou te procurar o Orkut” e... cada um para seu canto do avião, em casa, no hotel, em cada espaço de vida.
Do hotel com piscina, ele podia ver a praia. Pago pela Folha, janelas enormes. Ele nem se importava muito com isso de paisagem, mas até que passou a gostar de ver a noite em Copacabana; feiras livres, artistas de rua, velhinhos, Drummond, travecos... e pensou em até escrever um artigo sobre isso. Mas a noite ganhou um espaço especial e não era de matérias jornalísticas. Surpreendeu-se com uma vontade louca de fazer literatura, que não tinha desde seus 14 anos quando amou como conto de fadas em cenário e desfecho de gente grande. Sofreu, e como. E fim. Fim de ser assim.
Quis acender um cigarro, pegar um pedaço de papel e escrever sem pausas, mas não achou espaço adequado para restos e preferiu deixar o fumo para uma outra ocasião, já que o quarto tava tão-limpinho. Abdicou, então, da identidade em letra e resolveu sentar-se a frente do laptop para soltar de si o mais intenso fluxo de palavras desenfreadas, medos engasgados e vontade de explicar pra si aquilo que nem mesmo soube conter:
Rio de Janeiro, 12 de dezembro.
Sobre alguém que é Bossa Nova
Esta noite parece querer ouvir meus pensamentos confusos demais para os amigos de chope. Respeito, respiro e coloco Dindi para tocar re-pe-ti-da-men-te até que a voz da Gal se fizesse o meu silêncio. Tenho misturado divagações, eu sei. Mas entre os planos de amanhã andar de patins com o papai na Lagoa, se intrometia o te amaria um dia(.?) Não te amo, eu sei, não é assim, não é do-dia-pra-noite. Se soubesses o bem que eu te quero, o mundo seria, Dindi. Não te amo, mas sonhei com corredores e labirintos na noite passada.
Deito com “dragões”(não trouxe “triângulos”), histórias e vontades de entrega. Inútil ler o mesmo trecho três vezes e não extrair nada. Na-da. Pela terceira vez; não te amo mesmo. Com minha concentração nas águas do Dindi.
A noite quer me ouvir, ela aclama – Ah, Dindi – mas insisto em não falar mais de supostos e sonhos. Agora é, militarmente: viver, comer, beber, dormir. O tempo corre – “ e as águas desse rio, onde vão? eu não sei. “
Eu não sei.
E a vontade de continuar e concluir aquela quase carta escondida em texto escorreu de si com a mesma intensidade que a melancolia da incerteza dominava o tom de seus suspiros conclusivos. Derramou-se sobre um pedaço de cama e se encolhia a medida em que o computador descia sobre suas pernas e encontrava um lugar seguro para pernoitar. Sobre o adormecer, o sonho claro da angustia que se camufla nos diversos espaços do dia.
Eram cores amargas que encobriam grandes caixas com papéis que transbordavam sem parar, enquanto uma goteira preenchia um balde rapidamente. Ele corria por esse espaço na busca de encontrar uma solução para que os excessos coubessem em seus terminados lugares, precisos, encaixados. Sofria ao se ver atado diante da goteira, meu Deus, a goteira era independente dele, era vazamento do andar de cima (havia andar em cima?) e era preciso subir e fechar o registro rapidamente antes que inundasse tudo, e. Uma porta. Trancada. E uma voz que estimulava consigo um diálogo apertado:
- Será que você acreditaria?
- Talvez não, mas não iria pensar muito sobre isso. Eu só queria ter uma sensação certa de que deveria seguir, que tudo valeria a pena. Às vezes, queria acreditar que é além da minha imaginação o que eu percebo em algumas formas de me olharem. Queria ter isso como verdade sem precisar justificar. E alguns diriam: você é muito amado. E não haveria mais os labirintos e corredores da noite passada.
- Você deve abraçar tua loucura antes que seja tarde demais.
O dia em que se sentiu espaço, pensou que pudesse falar melhor de si. Olhava pela janela como se acompanhasse um trânsito de vida molhada por uma garoa fina de galochas, casacos e boinas de Março. Mas não, ainda não chovia. Era apenas um prelúdio em nublado, como o melhor gosto de pré que compunha suas mais intensas emoções.
.emoções de enchente que começaram a chover, poucos minutos pós, junto a grande São Paulo. Eram as águas de Março iniciando um novo pensamento de verão ( “e-as promessas-de-vida-no-seu-coração” ). Por isso, desceu corrente a Rua Augusta, voado, voando. Sentiu-se chuva caindo enquanto limpava as cinzas de uma eterna quarta-feira, de cigarro, de Folha, de si. Por fim, fez-se também mar ao desaguar-se em algo maior, bem maior.
E foi assim, no dia em que realmente se permitiu integrar no espaço de um amor, que pôde compreender-se diante das suas fronteiras flexíveis: em fluxo, dinâmicas, in-completas.
.completo, em seu estado integro de ser megalópole.
“O prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes afirmou em entrevista coletiva no início da noite desta terça-feira (6) que a maré alta pode piorar as enchentes na cidade, em caso de novas chuvas.” *
*(Fonte: site g1.globo.com)